quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Cântico Negro.

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio
(Vila do Conde, 17 de Dezembro de 1901 - Vila do Conde, 22 de Dezembro de 1969)

3 comentários:

MPaiva disse...

Parabéns pela escolha deste poema António. Sendo conterrâneo de José Régio, tenho redobradas razões para encontrar nesses versos um verdadeiro lema de vida!

Alison G. Altmayer disse...

António,

obrigada por me apresentar a este poeta maravilhoso! Valeu.

Anónimo disse...

Já há alguns dias que não vinha ler as "Palavras de Corredor". Vi que, entretanto, muitas notícias de corridas e treinos foram escritas.
Não fui à corrida da Costa porque o meu filhote fazia anos, 19 anos.
Vou esperar por uma outra prova para o cumprimentar. Moramos bem perto, de tal modo que quando venho ao blog penso "vou ler as coisas do meu vizinho". As suas "andanças" a companhia da Isabel e da Vitória são-me familiares.

Aproveitei este poema (pelo qual tenho um carinho muito, muito especial uma vez que vários motivos o ligam à minha filhota) para desejar que o Porto seja uma vitória pessoal e da família.
Boa sorte e beijinho
Paula