A minha Maratona do Porto (e, …algumas palavras de “Cemitério de Pianos” de José Luís Peixoto).
-Da meia-maratona à maratona.
Foquei-me depois no próximo ponto de retorno (o 3º, sensivelmente por baixo da ponte do Freixo e já de novo do lado do Porto), com o objectivo de lá chegar mantendo o mesmo ritmo, sabia o quanto era importante não deixar cair nesses quilómetros o ritmo com que tinha vindo até então.
Foram quilómetros extraordinariamente fáceis, fui ultrapassando alguns companheiros, com a Ponte de D. Luís cada vez mais perto e ainda do lado de Gaia foi tempo de beber mais água, a qual tinha recebido do abastecimento aos 25 quilómetros (também o tinha feito aos 20).
Ponte passada, a tal passagem para a outra margem, alguns incentivos, muitos em espanhol, também bastantes em francês, engraçado a diferença entre eles, os de "nuestros hermanos" bastante calorosos, já os dos franceses mais "tranquilos".
Já a caminho do 3º ponto de retorno passou o
Mark (grande estreia na distância) que me chamou pelo nome, olhei para ele e retribui o incentivo, vi o quanto ele ia bem e com uma expressão de felicidade estampada no rosto.
Como aconteceu após a passagem à meia-maratona umas dezenas de metros mais à frente seguia o
Pena, por vezes a distância entre nós diminuía, por vezes aumentava, ainda antes do ponto de retorno decidi tomar o 2º gel (e beber a água que levava na mão desde o último abastecimento por onde tínhamos passado).
Quase de seguida cheguei ao desejado ponto de retorno (o ritmo continuava dentro do previsto), altura em que me colei ao Pena, trocámos algumas palavras e seguimos juntos.
Foi ainda na companhia do Pena que passei aos 30 quilómetros com 2h30'48'' (ritmo de 5'02''/km), os 48 segundos de diferença em relação ao que tinha previsto inicialmente (2h30') não eram ainda suficientes para me desmoralizar e tentei mais do que nunca que o ritmo não caísse.
Pouco tempo depois e antes da passagem pelo túnel da Ribeira o Pena começou lentamente a distanciar-se de mim, resolvi não forçar e seguir com o objectivo de chegar às 3 horas de corrida com 36 quilómetros corridos (o tal ritmo de 5'00''/km), o que sabia ser já difícil de conseguir como viria a acontecer já que a placa dos 36 quilómetros foi deixada para trás quando já o meu relógio marcava 3 horas e quase 2 minutos de tempo de corrida.
Com uma marca final a rondar as 3h30' quase impossível de conseguir…entrei na fase da corrida em que tudo começou a ficar claro na minha cabeça…
"Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para deter-me, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim sempre. Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer. Porque a minha força é imortal."
José Luís Peixoto in Cemitério de Pianos
Recordo-me agora vagamente de ter visto as placas com os números 37 e 38, de beber água da garrafa que levava na mão, de ultrapassar ainda alguns companheiros, alguns que seguiam a passo, de ser ultrapassado por um trio que seguia com um bom ritmo, de ver ao longe a placa com o "39", de por perto seguir um companheiro fortemente incentivado por um amigo dele que seguia de bicicleta, de querer usar aquelas palavras de incentivo (não há pernas, corre com a cabeça) para mim, mas na minha cabeça eu só ouvia, …corre com o coração, com o coração, com o coração…
Vi-me de mão dada com a Vitória a dar o primeiro dos passos deste caminho, vi-me a correr feito louco à beira-mar naquela praia repleta de pessoas no passado mês de Agosto, vi-me ainda nesse mês de Agosto a sair da piscina e a vestir o equipamento para ir correr, a voltar à piscina para me despedir das minhas meninas, de sentir alguns olhares incrédulos, vi-me ainda a correr à beira-mar em outra praia, a correr nas dunas dessa praia, de sentir o suor escorrer pela face, de ouvir os aplausos e a festa da Vitória quando nesses treinos na praia da Costa eu me cruzava com elas, vi-me nos meus longos a cruzar-me mais que uma vez com o Chaiça, vi-me naquela tarde da "meia" de Portugal a cair na dúvida se algo não estava a ser bem feito, vi-me no dia seguinte em Sesimbra a ter a certeza que estava a ir no caminho certo, visualizei o meu final desejado de mão dada com a minha "menina de ouro", vivi as emoções da antecipação desse momento...
Recordo-me de ter visto a placa com o número 40, o estar tão perto do fim não surtiu em mim o efeito de ganhar, fosse por magia ou algo parecido, um novo alento para aqueles pouco mais de 2 quilómetros finais.
Já em plena Avenida da Boavista, agora no sentido ascendente, sabia o quanto estava perto de terminar mas continuei em "piloto automático".
Cheguei à desejada placa com o "42" e continuei como até então…
"E há paz no caos dos meus movimentos, pernas e braços sem equilíbrio, soltos, perdidos, desesperados. E há silêncio no rugido que me envolve, grave, constante, ensurdecedor. Há silêncio nas vozes, nas palmas (...) já não tenho dúvidas. Sou forte e sereno e imortal. Já não tenho dúvidas."
José Luís Peixoto in Cemitério de Pianos
Última curva, meta à vista, procurei com o olhar as "minhas meninas", virei-me para trás, quase que parei, vi a Isabel que me fazia gestos para avançar, olhei de novo em frente, continuei sem ver a Vitória, percebi então que provavelmente já tinha voltado para o hotel com os tios e com a prima, passei a linha de chegada, …sem o brilho da Vitória mas feliz, muito feliz, imensamente feliz.
Logo de seguida uma jovem colocou-me uma medalha ao peito e deu-me os parabéns.
Logo depois o reencontro com o
Ricardo, que tinha ficado à espera que eu terminasse, também com outros companheiros que também já tinham terminado (
Magro,
Andrade,
Meixedo,
Paiva), pouco depois também com o
Brito (que terminou pouco depois).
Voltei depois para junto da Isabel, beijei-a e ofereci-lhe uma rosa que trazia na mão, prémio pequeno para quem tanto contribuiu para um "caminho" com final feliz.