quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

50 (IV – Morte).

Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

José Luís Peixoto



Ano: 2000
Local: Almada, Margem Sul do Tejo.


Nunca…
O pai morreu!
O homem com o auscultador na mão nem consegue reagir às palavras da voz trémula da irmã, de novo a morte a marcar a vida do homem, morte para a qual nunca se está preparado, nunca…
Se o pai embora estivesse estado sempre presente na vida do homem tinha sido após a morte da mãe quando ele ainda era menino que a presença do pai marcaria para sempre o seu caminho ao longo dos quase 30 anos que se seguiram, o pai sempre presente, o pai sempre amigo, o pai sempre companheiro, o pai sempre brincalhão, o pai sempre cúmplice, o pai sempre tolerante, o pai sempre lutador, o pai sempre herói, para sempre…

Abraços, lágrimas, mulher, madrasta, irmã, sobrinho, cunhado, a ida ao hospital, reconhecer o corpo, a última noite, quase último adeus, a sala cheia, o caixão ainda aberto, as pessoas em pé à sua volta, lágrimas, palavras…
Ainda o caixão aberto, o vento que sente no rosto, o último adeus, lágrimas, palavras, o caixão já fechado que desce à terra…
Nunca, nunca, nunca…

1 comentário:

Maria Sem Frio Nem Casa disse...

Não tenho comentado, mas aprecio bastante esta versão do Corredor de Palavras. Bonitos, muito bonitos, todos os textos desta última "fornada"