Véspera de Natal de um qualquer ano futuro, pelas frestas de uma persiana de um quarto entram de mansinho os primeiros raios do dia, numa cama está o homem deitado, ao seu lado está a mulher, a mente do homem invadida pelas recordações das muitas manhãs em que se levantou e saiu porta fora correndo livremente pelas ruas, manhãs não passadas há muito tempo mas tão, tão distantes que parecem apenas e só fruto da imaginação do homem, mas não, o homem sabe bem o quanto elas foram reais.
Como um autómato o homem levanta-se e deambula pela casa, dirige-se à sua máquina de correr e permanece ali algum tempo parado, volta a deambular pela casa, da ombreira do quarto do casal olha o vulto da mulher que permanece deitada, pelo som da respiração percebe que dorme ainda, nova deambulação, entra no quarto da filha, pára junto da cama e olha por algum tempo a filha que igualmente dorme.
O homem volta depois a deambular pela casa, passado algum tempo decide equipar-se, de seguida volta ao quarto, seu e da mulher, depois volta de nove ao quarto da filha…
Já com a porta de casa aberta hesita em dar o passo seguinte, pensa nas duas pessoas que na casa ainda dormem mas esse pensamento não o impede, antes pelo contrário quase o impele a transpor de vez a porta.
Porta transposta, ouve o barulho da rotação que a câmara faz ficando bem de frente para si, olha-a fixamente, depois desce as escadas que o levam à rua.
Já na rua faz alguns exercícios de aquecimento, a câmara localizada mais perto da zona onde está vai girando à medida que o homem se vai movimentando, olha-a sem medo, desafiando-a.
Começa lentamente a correr, saboreia aquele momento há tanto tempo desejado, tempo demais, as poucas pessoas com quem se vai cruzando vão-se afastando e vão-lhe deitando olhares de soslaio.
Sabe que não terá muito mais tempo mas está decidido a tirar o máximo dos minutos que conseguir continuar a correr sem que o impeçam de o fazer, aumenta o passo ensaiando uma fuga anunciada e que sabe-a condenada ao fracasso, sente no rosto o ar frio de Dezembro e saboreia avidamente essa sensação como se fosse a primeira vez…
As muitas câmaras dos locais por onde vai passando vão rodando na sua direcção, ignora-as, não pensa no que virá a seguir, sente-se livre, livre como há muito não se sentia e isso faz renascer o homem, sem medo do que poderá ter que enfrentar…
Corre agora o homem ladeado por árvores, sente o cheiro intenso da terra orvalhada, aspira profundamente o ar que o rodeia, inclina ligeiramente o tronco para a frente, embala na descida, sente o chão a fugir debaixo dos pés, voa, cada vez mais alto…
Muito ao longe ouve a voz da mulher, também a da filha, abre os olhos, como que impulsionado por uma mola salta da cama, beija e abraça a mulher e a filha, diz que vai correr, equipa-se rapidamente e em três tempos está na rua a correr, saboreia cada metro daqueles mais de 20 quilómetros que corre depois como há muito não o fazia…
4 comentários:
Esse sonho parece o tema de um livro que li há anos de George Orwell - 1984.Que cada vez mais se torna real.Todos sabem onde estamos ou estivemos.
Bom Natal
E um ano 2014 cheio de coisas boas para ti e toda a família.
Boas corridas
cumps
J.Lopes
Feliz Natal António !!! Excelente 2014 !!!
Bem António, é raro visitar este teu cantinho, mas quando o faço fico de muito satisfeito com os belos textos que aqui vais deixando. Este está particularmente feliz. Que prazer e ligação retirei dele. Identifico-me com as palavras e o espírito. Gostei muito António! Grande Abraço
Parabéns, saudades dos teus escritos! MsHarkins
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